HISTÓRIAS DA ILHA
Histórias para alimentar a alma brasileira
por Luama Socio
Histórias da Ilha é resultado do projeto de extensão proposto por mim à Universidade Estadual do Tocantins, onde sou professora. Os trabalhos foram conduzidos ao longo do segundo semestre de 2019 envolvendo esforços institucionais e a colaboração dos membros da Comunidade Quilombola Ilha de São Vicente. De imediato as pessoas do quilombo gostaram da ideia de produzir um material de caráter poético que pudesse expressar suas vozes e suas histórias para ser divulgado para o máximo possível de pessoas.
O objetivo principal foi promover a escuta de histórias e discursos visando registrar e transcriar as poéticas em suportes escrito e audiovisual. A ideia do trabalho surgiu da necessidade de preservação desses saberes tradicionais, imateriais, constitutivos da identidade nacional, presentes no município de Araguatins, região do Bico do Papagaio, estado do Tocantins. O quilombo Ilha de São Vicente, no rio Araguaia, é um espaço privilegiado da conservação de histórias associadas à identidade tocantinense porque desde os seus inícios, na segunda metade do século XIX, prossegue habitado pelos descendentes de seus fundadores, resistindo em suas formas de vida.
Nas histórias contadas pelos habitantes da Ilha sobressaem os signos da forte conexão entre os seres humanos e o seu lugar de pertencimento para além da materialidade imediata, apontando para as formas próprias do uso da palavra, que vão desde a estética de sua linguagem até os sentidos variados de seus conteúdos simbólicos. Pela palavra, pela linguagem, o quilombo supera a limitação territorial da Ilha e comunica suas mensagens ao mundo.
Os signos dos saberes de nossos ancestrais são hoje imprescindíveis para a formação da noção de cultura e pertencimento nas mentes e corações do povo. A contraparte do mundo globalizado demanda a valorização dos elementos culturais regionais, locais, incluindo as poéticas e práticas discursivas. Caso isso não ocorra os seres humanos correm o risco de tornarem-se cada vez mais alienados de sua própria noção de origem, do seu entorno geográfico, ambiental, cultural e político, enfim, de sua identidade, tornando-se meros autômatos consumistas da ordem econômica predadora, massificadora e desterritorializada da globalização capitaneada pelas grandes corporações financeiras.
Para caminharmos em direção à construção de um entendimento amplo do conceito de cultura é necessária a integração das amplitudes plurais identitárias das construções sociais. O reconhecimento das pluralidades identitárias ocorre por meio da proteção e cultivo das riquezas imateriais tanto quanto das materiais. As poéticas preservadas e criadas por membros das comunidades quilombolas fazem parte das raízes do imaginário da identidade do país e também especificamente do estado do Tocantins. Nesse sentido, essa cultura se expressa como um elemento de integração da própria identidade nacional na medida em que revela semelhanças com estruturas culturais de comunidades de outras regiões do país e especificidades regionais que delineiam a particularidade cultural em questão.
Pela própria constituição histórica de sua estrutura política, os saberes quilombolas tendem a ser desprezados como válidos pela sociedade padronizada dos costumes consumistas da era da globalização em massa. O fato evidente da exclusão cultural, por outro lado, tendo já sido discernido, enseja o posicionamento nitidamente favorável a um esforço de reversibilidade com vistas à recuperação de uma espécie de riqueza até então desconhecida. Gostaríamos que essas histórias quilombolas integrassem definitivamente o arcabouço do imaginário dos saberes significativos na vida de alunos, professores e leitores do Brasil, pela perspectiva da riqueza e pluralidade de sua forma.
Atualmente não se desconhece o fato de que o ser humano - como ser simbólico na era do conhecimento científico e da predominância dos meios de comunicação de massa, propagadores de imagens e sons que funcionam como modelos universais - passa por um empobrecimento da capacidade imaginativa ativa, pois tornou-se geralmente um receptáculo passivo das mensagens massificadas. Posto isso, com a disponibilização dessas histórias, temos a esperança de contribuir para a dinamização entre a dimensão simbólica das poéticas quilombolas, recheadas de figuras do ambiente natural, e a construção de um conhecimento cultural que deve ser ressignificado continuamente no fluxo histórico das relações identitárias e estéticas.
A dinamização entre símbolo e identidade/afetividade no nível do imaginário pode ser sentida de imediato à leitura ou audição das histórias. Por exemplo, Fátima Barros nos conta a lenda da origem dos rios Araguaia e Tocantins, em que um é “da cor da lua” e o outro é “da cor do sangue”, sendo que antes de serem rios, eles foram duas cobras. A simples consideração da força simbólica dessa descrição resgata e elucida aspectos do imaginário associados ao ambiente natural do entorno geográfico dos habitantes da região. Essa história, que foi ouvida por mim, me guiou em minhas considerações sobre esses rios e guiará, pelas imaginações, as considerações de todos os que a ouvem, imprimindo um significado e um imaginário correspondente, relacionando simbolicamente sabedorias, afetividades e identidades que são importantes na valorização e preservação da nossa cultura.
Os quilombolas, esses estrangeiros ancestrais em relação à cultura de massa predominante em nossa vida agora, personificam, com relação às histórias que contam, verdadeiros mensageiros das raízes de nossa história material em consonância com a dimensão do imaginário. Eles são os distribuidores dos tesouros capazes de enriquecer a visão de mundo e alimentar de esperança a alma de todos os professores, jovens, crianças e leitores do Brasil.